Poucos filmes detêm um nível de autor no gênero indie de comédias dramáticas tão grande quanto os da filmografia de Noah Baumbach, “Lula e a Baleia” e “Enquanto Somos Tão Jovens” são ótimos exemplos de sua técnica, com críticas aguçadas, drama introspectivo e humor cru, e sobre os constrangimentos do mundo real ele é capaz de evocar várias sensações em suas produções.
Agora é lançado “Os Meyerowitz: Família Não Se Escolhe”, o mais novo filme da Netflix com Dustin Hoffman, Emma Thompson, Bem Stiller, Adam Sandler no elenco.
Na trama da comédia dramática Harold Meyerowitz (Dustin Hoffman) é um artista ranzinza que está organizando uma exposição, no entanto ele adoece, e isso faz com seus filhos Mathew (Ben Stiller), Danny (Adam Sandler) e Jean (Elizabeth Marvel) se unam para ajudá-lo, porém a reunião familiar acabará revivendo eventos do passado.
O cinema possui certas regras para desenvolvimento de um filme, quase sempre baseadas no formato de três atos, existem exceções, “Batman Vs Superman: A Origem da Justiça” é uma produção que usa quatro atos, “Dunkirk” subverte a ideia do desenvolvimento dos personagens assim como “Cães de Aluguel” e “Pulp Fiction”, e aqui está mais um caso de subversão, mas feita de forma sucinta e menos eloquente que essas citadas.
O script aqui traz uma evolução para cada personagem, mas focando maior parte de seu tempo nos filhos de Harold, Mathew e Danny, e com muito mais destaque para o trabalho de Sandler.
A trama apresenta uma divisão em capítulos, cada um focado em um aspecto diferente da família Meyerowitz, seja em como a criação do pai e seus erros influenciaram diretamente em seus filhos e em seus comportamentos, assim como desenvolve bem as questões profundas sobre a vida em um convívio familiar conturbado, há até mesmo uma curiosa metalinguagem com a filha, esquecida quase sempre pelo pai e desprovida de um capítulo para si, ela existe e se desenvolve dentro dos arcos dos outros personagens.
É preciso dizer que esse não se classifica como outras comédias dramáticas ao estilo “Feel Good Movie”, nunca somos a julgar ou categorizar alguém como certo ou errado, tudo aqui é cru e extremamente multidimensional, nada em momento algum nos levará para clássicos momentos de imposição, superação e uma linda reconciliação junto à uma trilha tocante, esse não é o seu foco, pelo contrário.
Essa excentricidade e o toque de “real” de cada personagem é bem costurado e evolui de forma não convencional e bastante sutil, que aliado ao humor sobre constrangimentos da vida moderna, nos conecta gradativamente em suas emoções e confusões familiares.
Muito disso funciona graças à sua fotografia que é ótima, e em certos momentos a câmera faz caminhos a lá Wes Anderson, levando a história de um ponto a outro em uma reta, já em outros momentos usa uma abordagem intimista com planos próximos durantes as longas conversas, enquanto suas cores estão no limite entre o frio e o quente, como se tentasse sintetizar um pouco do estilo cômico e dramático da obra.
Outro detalhe bem conduzido é a trilha sonora de Randy Newman, com um tom bem curioso de jazz e que ajuda no desenvolvimento do filme.
A direção de arte também usa muitos elementos interessantes, seja pelas construções urbanas do restaurante e do museu que trazem essa aura do real para a trama, assim como o modelo da casa dos pais que de certa maneira impõem essa alma artística desse pai conturbado.
Tudo isso por mais inusitado que possa transparecer, brilha devido ao elenco, Adam Sandler merece todos os elogios que teve na exibição do filme em Cannes, essa é sem sombra de dúvida uma de suas melhores atuações em drama desde “Reine Sobre Mim” e “Embriagado de Amor”, assim como seus personagens nessas outras duas produções, ele se mostra um grande acerto ao interpretar nuances introspectivas em Danny, um homem que dá aulas de piano e está recém saído de um divórcio e encontra-se morando na casa dos pais junto de sua filha. Muito de seu comportamento é oriundo de como seu pai o criou, e Sandler sempre que se arrisca em drama sabe bem fazer tais personagens sutis e contidos, irônico já que são o oposto de seus trabalhos no humor.
Ben Stiller já vinha trazendo boas performances dramáticas em “A Vida Secreta de Walter Mitty” e “Enquanto Somos Jovens”, aqui temos mais um ótimo papel como Mathew, o filho bem-sucedido e preferido de Harold, mas que suas escolhas de vida entram em contraste com a família artística e com Danny. A relação entre os dois irmãos é bem trabalhada e divertida de ver, muitos que tem irmão ou irmã devem se sintonizar com esse filme em algum momento, isso se deve e muito à atuação e química de ambos.
Falemos agora das mulheres, mas não menos importantes, começando pela irmã excêntrica vivida por Elizabeth Marvel, que por diversas vezes funciona como uma mediadora entre Danny e Mathew, e acaba quase sempre esquecida pela família, mas é ela que traz alguns dos momentos mais engraçados do filme, e claro, como não comentar da estreante e promissora Grace Van Patten?
Patten faz a Eliza, filha de Danny, que é tão diferente de seu pai e extremamente tocante em todas as cenas que fazem em conjunto. Sempre divertida e carismática, a relação extrai o melhor de ambos os atores e nos faz compreender os sentimentos familiares que têm um pelo outro.
Dustin Hoffman e Emma Thompson são importantes complementos, e com poucas cenas nos revelam muito de seus polêmicos e estranhos pais. São pessoas incorrigíveis que criaram seus filhos a seu modo particular. Hoffman mostra descaradamente o quanto prefere Mathew ao Danny, isso de certa forma pontua vários dos capítulos do longa, além do seu tom narcisista e arrogante.
Adam Driver e Candice Bergent tem apenas singelas participações, mas nada de muito peso na produção.
Essa é mais uma direção certeira de Noah Baumbach, que coordena bem esse conceito que tem sobre emular um pouco do ritmo da vida através de cenas longas, onde diálogos e mais diálogos são traçados, e conduzem cada capítulo da narrativa. Podemos até dizer que Baumbach traz uma boa mistura de Wes Anderson e Woody Allen, mas não se engane, o que ele faz aqui se difere dos outros, pois ele dirige de tal forma, que a trama se torna relacionável conosco, tocante, divertida, crua e bizarra ao mesmo tempo.
“Os Meyerowitz: Família não Se Escolhe” é um longa para poucos, não sendo recomendado para aqueles que olham para Bem Stiller e Adam Sandler e buscam por uma comédia despretensiosa. Esse filme tem uma abordagem simples, profunda e inusitada, a sua história aos poucos cresce gerando empatia e risadas sutis ao longo da trama, que trabalha questões familiares e foge totalmente dos clichês esperados em dramas habituais. Trata-se de uma produção que deve ser digerida e apreciada aos poucos, mas que com toda certeza ficará entre as melhores do catálogo da Netflix, trazendo ainda, atuações inspiradas de seu elenco que dão vida à uma obra cuja pretensão é sintetizar um pouco da essência da vida.