Para começar a falar sobre o retorno de Twin Peaks é necessário dar um pequeno resumo sobre essa conturbada, icônica e revolucionária produção que rompeu barreiras na TV, abrindo caminho para a nova geração de séries. Caso você seja um fã de American Gods, Bates Motel, American Horror Story e até mesmo Game of Thrones, você deve tudo isso ao que David Lynch e Mark Frost fizeram em 1990.
Na trama, após a morte de Laura Palmer (Sheryl Lee), jovem querida por todos na inusitada e surreal cidade de Twin Peaks, o detetive do FBI, Dale Cooper (Kyle MacLachlan), viaja para a pequena cidade a fim de investigar o caso, no entanto o local esconde mais segredos do que ele imagina e, todos os habitantes parecem ter tido algum papel dentro do caso da morte de Laura.
A série foi a princípio idealizada como um filme, mas se tornou complexa demais para o formato, sendo assim a produção trouxe artifícios cinematográficos para a TV e influenciou séries como Arquivo X e Lost, entretanto após a pressão do estúdio, o mistério da história foi revelado antes da hora e com o afastamento de Lynch na segunda temporada a trama decaiu e coconsequentemente a sua audiência tornou-se escassa, provocando o cancelamento da série. O diretor então retornou no season finale para tentar fechar as pontas soltas e depois pensou em produzir uma trilogia de filmes para concluir a história, mas a má recepção ao primeiro filme fez com que ele engavetassem o projeto.
25 anos depois, a série retornou pela Showtime e distribuída pela Netflix. Agora, Dale Cooper está preso em uma realidade paralela e precisa retornar a Twin Peaks, enquanto isso outro Dale Cooper, frio, cruel e calculista caminha pelo mundo executando esquemas e assassinatos, ao mesmo tempo em que crimes brutais e estranhos desaparecimentos ocorrem na pequena cidade.
Pois bem, dito isso, podemos dizer que a série retornou com força total alcançando todo o seu potencial e levando a trama a níveis épicos com liberdade, grande orçamento e sabendo os momentos certos para reviver o passado e quando olhar para frente, e assim estabelecer sua nova e elaborada trama.
Falemos então do roteiro dessa premiere de dois episódios, com uma história que se passa não só em Twin Peaks como também em Las Vegas, Nova York e muitas outras cidades, somos apresentados a uma nova onda de crimes quando uma mulher é decapitada e seu corpo é encontrado próximo de um homem sem cabeça e o principal acusado é o diretor da escola William Hastings, temos também uma subtrama crescendo sobre um Dale Cooper cabeludo, sombrio e assassino enquanto o antigo Cooper está preso em uma realidade de sonhos e há ainda um arco bizarro de um local estranho onde um homem com câmeras posicionadas para uma caixa de vidro aguarda por algo.
Ainda há muito a ser explicado e entendido, mas é exatamente isso o que esperávamos. Percebe-se que nos aprofundaremos na mitologia do programa, explorando cada vez mais a natureza dos sonhos e das múltiplas ligações entre os habitantes. Em menor escala também está sendo desenvolvido elementos de terror e sci-fi, mas tudo claro, seguindo as leis dos universos de David Lynch.
O script está muito bem montado, quase não se vê o tempo passar durante os episódios, dando o tempo certo para brincar com as nossas sensações e para apresentar os novos e antigos personagens juntamente dos elementos da narrativa, ainda que se leve muito tempo para reviver personagens do passado, único deslize cometido aqui.
O design de produção e a fotografia funcionam de forma conjunta e por isso que devemos elogiar, conseguiu-se aqui manter o estilo visual antigo em harmonia, entretanto nós vemos que caminha muito mais além do que já havia sido feito anteriormente na década de 90, com movimentos rebuscados de câmera e um cenário que se assemelha a pinturas, e assim o público aos poucos é transportado para o mundo surreal e sombrio da série.
Mas de nada funcionaria tudo isso se não tivesse um bom elenco envolvido no projeto, e o que mais temos aqui são bons atores e, o melhor, com um foco absurdo em seus personagens.
No elenco, nomes antigos retornam como: Kyle MacLachlan, Sheryl Lee, Carel Struycken, Russ Tamblyn, Michael Horse, Mädchen Amick, Richard Beymer entre vários outros retornam e novos atores surgem também como Matthew Lillard, Jennifer Jason Leigh, Ashley Judd e Madeline Zima.
De longe a melhor atuação é a de MacLachlan, o destemido, espirituoso e simpático detetive se encontra preso em um plano espiritual tentando entender os acontecimentos e tramando sua fuga e do lado da realidade temos também um Dale Cooper sombrio e psicótico com um visual que lembra os índios dos EUA, com uma voz e personificação completamente diferente do Cooper que conhecemos. Já os outros atores e atrizes em sua maioria cumprem bem seus papéis como Carel Struycken interpretando o Gigante, Richard Beymer como Benjamin Horne, Sheryl Lee como Laura Palmer entre outros, não há ainda o que ser desenvolvido entre eles sendo que o foco é dado em grande parte as versões de Dale Cooper, ainda assim os atores revivem seus personagens como se não atuassem há cerca de um ano, já sobre os novos personagens ainda não demonstram a que vieram.
E para finalizar falemos da direção que traz David Lynch do exílio de volta à cultura pop e a sensação que temos é que sua visão não só é a mesma como parece ter um olhar ainda mais profundo e apurado sobre a mitologia de Twin Peaks, tudo está lá, o tom surreal, o humor negro característico, os núcleos diversos e bem equilibrados, é como se ele tivesse voltado sedento de vontade de tornar Twin Peaks sua obra máxima de toda a sua carreira e tendo em vista que foi aplaudido em Cannes, não será algo difícil de conquistar.
Com dois episódios intrigantes que se aproveitam de algumas brechas dadas em temporadas antigas somos reapresentados a icônica cidade em uma escala maior, mesmo espírito e uma atuação inspirada de Kyle MacLachlan e ao que parece mistérios ainda mais complexos permearão seu retorno, tornando esse não só o retorno mais triunfante de uma série, como também um grande entretenimento para esse ano. Então pegue sua fatia de torta, hospede-se no “The Great Northern Hotel”, tome um gole de café e curta mais uma vez essa viagem pela cidade com mais segredos que se imagina e com mais a se ver do que seus olhos poderão perceber.